A SUBJETIVIDADE DO RETRADO DO ARTISTA EM RECOLHIMENTO

Lia Petrelli
6 min readApr 22, 2020
Livre intervenção digital sobre a capa do livro Retrato do Artista Quando Jovem, de James Joyce

Pensando sobre a questão ser artista em quarentena, juntei meus cacos artísticos-analíticos para uma questão importante: a subjetividade do recolhimento. Irei brevemente traçar, nisso que chamei de ensaio, algumas das coisas que me têm apavorado dentro desse lugar-casa-cabeça que estamos, em maioria, enfrentando e começarei contando a jornada de James Joyce na minha vida.

O primeiro livro que li deste -que julgo brilhante- autor foi O Retrato do Artista Quando Jovem, no início dos meus 17 anos, quando decidi entrar na faculdade de artes. Não bem entendia, lógico, a função do artista no mundo quando este livro me foi recomendado, e mal sabia o efeito catártico que encontraria nas páginas que estava prestes a abrir. Eis que decidi pegar um ônibus em direção à praia e iniciei a leitura quando entrei na estrada, tão logo me deparei com a longa história de um personagem devoto. Me encaminhei para os destroços de uma igrejinha no centro da cidade que, na época, abrigava um convento. Diária e religiosamente me punha a ler o livro sem parar por algumas horas dentro da igreja.

O Retrato do Artista Quando Jovem é um dos mais importantes romances de formação da literatura universal. Esse termo “romance de formação” é utilizado sempre que o desenvolvimento de pensamento político, físico, social, intelectual, etcetcetc, de um personagem é minuciosamente descrito no corpo do romance. É exatamente isso que faz James Joyce dentro de seu Retrato. Stephen Dedalus é um personagem recorrente na obra do autor, afinal de contas, as obras de Joyce beiram a autobiografia e não é de hoje que se tornou objeto de estudos de diversos campos críticos.

Pois bem, o romance narra a vida de Dedalus desde sua infância e percorre as transformações que lhe atravessam, construindo e desconstruindo uma personalidade peculiar. Desde sua ida ao internato, enfrentamento de desejos carnais, profissionais e psíquicos, a busca sua de identidade é extremamente marcada nas 300 e algumas páginas do livro. Apesar de ter sido escrito na terceira pessoa, a narração acompanha os fluxos de pensamentos e emoções do personagem, de acordo também com a idade de Stephen. O pensamento infantil é marcado por diversas percepções desconexas e diálogos curtos, coisa que vai mudando conforme o personagem cresce: as descrições de outros personagens, lugares acontece com frases mais longas e pensamentos mais elaborados, e é assim que podemos acompanhar as etapas da vida de Dedalus.

O momento de virada do romance se dá a partir de um horrível sermão sobre o inferno, aplicado por um padre, que impressiona o personagem de tal maneira que passa a viver como devoto, seguindo à risca jejuns e mandamentos da igreja católica, já se sentindo como um padre. Como disse antes, não sabia dos efeitos catárticos que me ocorreriam durante a leitura e eis que quase abandonei a Grande São Paulo para viver como freira interina no convento de Itanhaém. Felizmente Stephen encontrou a sensualidade e os pecados, podendo descarregar as ordens católicas em obsessivos pensamentos confessionários, mudando sua forma de agir no mundo.

Ao abandonar a ideia de se tornar padre, os interesses do personagem migram para o interesse artístico e estéticos quando entra para a universidade, quando passa a relembrar o catolicismo através de São Thomé de Aquino, que se entrelaça de modo épico ao seu pensamento artístico, deixando claro que o personagem jamais abandonara a fé. A sequência da história encontra a adoção do protestantismo, que é totalmente ilógico, incoerente e irracional. Depois podemos falar de Ulisses e Finnegans Wake, sequencias extraordinárias do personagem-máscara de Joyce.

Esse livro nunca me saiu da cabeça, pelos óbvios motivos mencionados até aqui. Joyce me emprestou seus olhos e sensações em níveis formidáveis pois fora a primeira vez que confundi minha própria vida com a de um personagem, que também era uma pessoa real. Este é precisamente o poder da literatura de James, que me fascina desde então. Desde o início de meus estudos semióticos, este romance me intrigou. Mais ainda quando descobri, em 2017 — quatro anos depois de ter lido Joyce — que Jaques Lacan, psicanalista francês, utilizara o autor para retraçar os funcionamentos psíquicos do ser humano.

No Seminário 23: O Sinthoma, Lacan analisa Joyce a partir da subjetividade do sujeito. Ele diz que o ser humano é composto por três pilares: o real, o simbólico e o imaginário. O real ocupa dois lugares dentro da nossa mente, o primeiro é a atribuição de sentido, através das coisas que explicamos (normalmente pela fala), o segundo é abraçado pelo não-sentido, ou seja, as coisas que sentimos e não conseguimos explicar.

Oras, Joyce era um inventor da linguagem, além das narrativas, ele criava também palavras: que maneira mais pura seria a tradução de um sentimento que não fosse

“bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarrhounawnskawntoohoohoordenenthurnuk!” [Finnegans Wake, 1939]

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A maioria dos escritores, poetas, artistas em geral, tem a capacidade de capturar narrativas de sofrimento e dar forma aos sintomas que participam deste lugar. Desde conflitos interpessoais, a discussões sócio-políticas, os artistas são os responsáveis por delinear o contorno das épocas inteiras. Não é a toa que o Surrealismo (década de 20) acontece dentro do próprio inconsciente, e que Lacan admirava seus expoentes por entender que André Breton, por exemplo, compreendia a psicanálise de forma mais ampla que os próprios psicanalistas da época.

O enfrentamento do desejo frente às imposições sociais e religiosas de nosso momento brasileiro peca quando conversa com artistas. Tenho notado que, assim como a competitividade mercadológica, a competitividade de criação nos atravessa de forma bruta. Não precisamos criar a todo momento, por mais que estejamos em recolhimento social, mas alguns discursos que acompanho online me fazem refletir sobre o momento de parar.

É realmente fazer arte que classifica o ser artista?

Bom, para essa questão vou recorrer ao vídeo recentemente postado pela artista multimídia LUMANZIN — que parece estar conectada ao meu modo de entender arte/vida dentro do inconsciente coletivo. Lançando perguntas instigantes em seus stories, Lu incitou a discussão mais necessária, até então, desta \QuArentEnA/ e a resposta para a pergunta acima é: NÃO. (?).

Logo no começo do vídeo formidavelmente colocado, Lu diz: “as respostas foram muitas e eu fui contestando as respostas na minha cabeça, e também concordando com elas, fazendo esse exercício de entender também porquê a pessoa disse aquilo; entender as possíveis variáveis das respostas e das interpretações, enfim… Porque assim você ganha repertório dentro da sua própria cabeça, quando você discute com você mesmo, e você fica um pouco mais inteligente porque você pensa, né, basicamente. Tem que PENSAR gente, é o mínimo.” [kkkkk assistam o vídeo: @lumanzin]

Dentro de todos esses questionamentos e posições, Lu entra na resposta de alguém que disse que “artista é alguém que te inspira”, nesse momento, tentando desvendar o que comentar, entre a suspensão e o suspiro, solta desenfreadamente: “Não sei a palavra, fiquei procurando a palavra mas eu não achei a palavra.”

Pronto, para mim, LUMANZIN desvendou o mistério — que é precisamente o que tento abordar aqui dentro desses pensamentos — a subjetividade do artista está no lugar de não saber como, mas de alguma maneira conseguir expressar exatamente o que participa de seu pensamento.

Então, não deveria existir preocupação se a criação não vem quando é chamada. Não é assim a relação que devemos ter para sobreviver neste momento. Penso muito sobre a pausa. O mundo está em pausa, por que nós deveríamos continuar acelerados?

A subjetividade é exatamente a junção do real, do simbólico e do imaginário, então poderíamos pensar sobre a não produção também como o respiro da própria imaginação. Fazer por fazer pode acabar num beco sem saída infindo. Não refletir e explanar os funcionamentos trocados do tempo e da liberdade e da democracia faz com que a arte seja feita só por ser feita e aí me questiono se há potência nisso. Qual a importância de uma arte impotente? Qual a importância de um pensamento sem lugar? A essa última questão, respondo que: muitos, mas que não precisam ser, necessariamente, postos em criação, ou lançados ao mundo, sem o propósito crítico.

A situação política já está navegando sobre o caos, não precisamos inundar mais ainda o ambiente competitivo de forma exagerada. Discussões postas em pauta sim, são válidas, mas não as que geram discordância violenta, poderíamos focar nas que fazem refletir e readaptar a convivência interna — a que acontece dentro da gente, mesmo.

Afinal, como escreveu Chico Buarque: “O que será que será, que dá dentro da gente e que não devia, que desacata a gente, que é revelia?”

Ou ainda, como Ferreira Gullar: “Uma parte de mim é permanente: outra parte se sabe de repente. Uma parte de mim é só vertigem: outra parte, linguagem.”

Já que escrevi sobre a subjetividade, não pretendia chegar a ponto algum com este texto, portanto, por hora, acabo por aqui.

Se vocês, leitores, quiserem conversar, precisarem respirar novos ares, e pensar sobre outras coisas, tenho a conta do instagram (@liapetrelli) aberta e, apesar do momento de pausa, estou disponível para o pensamento coletivo.

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Lia Petrelli

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